segunda-feira, 13 de abril de 2015

Encontro com a água

Sibélia Zanon

Quando encontramos a água, foi um dia de festa para nós. Cada nascente em nossa Terra significa alegria e riqueza.



Na primeira vez em que a menina viu o mar, saiu correndo de braços abertos em direção à água grande. A atitude, misto de maravilha e euforia, nem combinava muito com a criança, que era pouco dada a aventuras aquáticas, tendo prevenção inclusive com relação à banheira de casa, que para os seus pequenos anos mais parecia uma piscina profunda.
São muitos os encontros com a água. Pisar descalça na grama molhada, trilhar em busca da cachoeira, acolher a chuva mansa que acalma ao repetir sua música na vidraça. Talvez não possamos nos lembrar do primeiro encontro, quando ficamos, abrigados ao longo de 9 meses, em um útero repleto da água do corpo da mãe.

Eu venho desse reino generoso,
onde os homens que nascem dos seus verdes
continuam cativos, esquecidos,
e contudo profundamente irmãos
das coisas poderosas, permanentes
como as águas, o vento e a esperança.”
Thiago de Mello,
Amazônia, Pátria da Água


Mas não somos os únicos que celebram o encontro com a água. Me lembro de uma chuva, que chegou de surpresa, após dias de seca. Saímos de carro, dando carona para uma perereca no capô. Depois de alguns metros percorridos na estrada de terra, notei algo que se movia nas poças d’água. Diminuímos a velocidade. Pareciam dois sapos bem grandes. Mas não. As asas se abriram e duas corujas se delinearam pelos ares após o banho ao entardecer. Os bichos festejam a água.
            Nós, humanos, somos cerca de 70% de água e temos uma relação de amor, sobretudo de vida, com a água. Infelizmente, a relação de amor pode se transformar em relação de morte, como mostra, em parte, o documentário canadense Marcas da Água (Watermark), ao apontar a exploração da água em diversas partes do mundo, um jogo perigoso que se faz ao moldar a natureza pela intervenção industrial e não o contrário. O documentário mostra, em escala global, os prejuízos que cada um de nós já deve ter observado localmente.

Não existe incompatibilidade entre agricultura e preservação ambiental. Ao contrário. Uma agricultura sábia preserva o meio ambiente.
Antonio Donato Nobre,

 documentário Lei da Água


            Além de permitir a vida, não apenas a nossa, mas a de todos os seres, a água, quando observada, também nos ajuda a compreendê-la. Em Na Luz da Verdade, Abdruschin faz uma referência à importância do movimento, que é uma lei da natureza, fazendo uma analogia com a água:
Pensai também num riacho alegremente murmurante. Como é deliciosa a sua água, como é refrescante e vivificante, oferecendo refrigério a todos os sedentos e com isso trazendo alegrias e proporcionando bênçãos no percurso que segue. Se, contudo, dessa água, aqui e acolá, uma pequena parte se separa, ao saltar de modo independente para o lado, então aquela parte que se separou fica, na maioria dos casos, logo retida e inerte, qual pequena poça, que, em sua separação, perde rapidamente o frescor e a limpidez, exalando mau cheiro, porque, sem movimento, pouco a pouco se deteriora, devendo tornar-se ruim e podre.

Se na alma dos rios estão as encantarias – o lugar habitado pelos encantadores; se nas margens estão as casas, as várzeas, os pássaros, as palmeiras – o mural da mata ou da floresta; se na epiderme dos rios navegam os barcos; no corpo dos rios circulam os peixes. Como outras tatuagens do imaginário na pele das águas, eles avançam, mergulham, boiam, nadam em ângulos, isolados ou em cardumes, povoando em espécies e números impossíveis de contar os milhares de rios.
João de Jesus Paes Loureiro,
Cultura Amazônica

Na mesma linha, observar uma gota d’água nos faz entender um fenômeno simples e relevante. Não há, às vezes, bacilos na água, no ar, que possuem força para destruir corpos humanos, e que não são percebidos pelos olhos? Todavia se tornam visíveis através de instrumentos aperfeiçoados. Quem ousará ainda depois disso afirmar que não encontrareis coisas novas até agora desconhecidas, tão logo aperfeiçoardes melhor tais instrumentos?”, escreve ainda Abdruschin.
A reflexão sobre a gota d’água lembra que nem tudo o que existe a gente vê. E nem por isso as coisas deixam de existir. Quantos são os segredos que nossos olhos não sabem enxergar? Os povos antigos, conectados de forma intensa com as águas, terras e matas, tinham uma percepção mais profunda sobre as forças na natureza e a certeza da existência dos seres que cuidavam das florestas.
A floresta esconde olhos que espreitam, que perscrutam, que vigiam. A floresta não tem um só olho. Eles são incontáveis. E não são seus olhos, são olhos que nela se escondem. As folhas escondem olhos. Olhares vagam por entre os troncos de gigantescas árvores. Os escuros escondem olhos. São, portanto, multidões de olhos espalhados nas infinitas faces misteriosas da floresta.”, escreve João de Jesus Paes Loureiro em Cultura Amazônica.
Se os olhos da floresta estão abertos, talvez os nossos precisem se abrir para permitir que o futuro nos traga ainda novos encontros com a água. Se os rios das cidades grandes estão sujos, os rios das nossas ações e dos nossos quereres também estão poluídos de ganâncias e cegueiras. E se eles forem limpos? Por qual rio podemos começar?

Como ele sempre dissera: o rio e o coração, o que os une? O rio nunca está feito, como não está o coração. Ambos são sempre nascentes, sempre nascendo.”
Mia Couto,
A chuva pasmada



Fotos: Sibélia Zanon

Nenhum comentário:

Postar um comentário