quinta-feira, 21 de agosto de 2014

O cultivo da beleza

Daniela Schmitz Wortmeyer


Eu voltava de ônibus de um distrito rural da minha cidade natal, olhando a paisagem pela janela, meditando sobre os últimos acontecimentos... Então vi uma cena, envolta por uma luz suave, que me alcançou profundamente, trazendo lágrimas à tona. Era uma casa simples de madeira, sem pintura, acho que nem cerca tinha. Em frente havia uma pequena varanda, circundada por um parapeito também de madeira rústica. E, por sobre toda a extensão do parapeito, repousavam recipientes plásticos cuidadosamente organizados - embalagens reaproveitadas nas quais vicejava uma profusão de cactos e suculentas, de uma beleza indescritível. Algumas suculentas também pendiam do teto, com longas e magníficas hastes. Senti um forte impacto diante do contraste daquela morada tão singela, adornada com tanto zelo e delicadeza. Comoveu-me imaginar que bela alma moraria naquele lugar...
Detalhes despretensiosos do cotidiano revelam como nos relacionamos com o mundo, o valor que atribuímos às pessoas e coisas com que temos contato. Pequenos gestos evidenciam disposições íntimas, denunciam o grau de atenção e consideração que devotamos a determinadas experiências, sua significação para nós. “Nas coisas pequenas se revelam as coisas grandes”, diz um antigo aforismo.
O filósofo Roger Scruton, no livro intitulado Beleza, enfatiza a importância desses detalhes sutis para a vida humana. Ele observa que: “Muito do que é dito sobre a beleza e sobre sua importância em nossas vidas ignora a beleza mínima de uma rua despretensiosa, de um bom par de sapatos ou de um pedaço refinado de papel de presente; é como se essas coisas pertencessem a uma ordem de valor distinta da ordem de valor de uma igreja construída por Bramante ou de um soneto escrito por Shakespeare.”
Mesmo reverenciando as grandes obras de arte, Scruton considera que as “belezas mínimas” que permeiam nosso dia a dia tornam-se mais importantes, pois: “Fazem parte do contexto em que vivemos, e nosso desejo de harmonia, adequação e civilidade encontram nelas expressão e confirmação.” Em sua abrangente reflexão sobre o tema, o autor constata que esses pequenos ornamentos nos fazem sentir “em casa”, conferindo um senso de ordem e dignidade à vida humana.


Os mistérios da beleza e seus caminhos no espírito humano têm ocupado as reflexões de filósofos, religiosos e artistas há longos tempos. O filósofo Platão, no livro A República, afirma que “ritmo e harmonia permeiam o interior da alma mais do que qualquer outra coisa”. Para esse pensador, na contemplação do belo o ser humano buscaria algo além das aparências, a conexão com a fonte da própria beleza. Pois a beleza refletiria a harmonia das Leis Universais, um plano além dessa realidade material que podemos apalpar. Assim, seríamos atraídos pela harmonia, porque algo dentro de nós anseia pela unidade com essa Ordem Universal.
Platão defende que seja dada especial atenção à conformação do ambiente onde crianças e jovens se desenvolvem. Para o filósofo, se forem habituados a um contexto envolto por beleza - por meio da música, poesia, arquitetura, tecelagem, enfim, de todo tipo de manifestação genuinamente nobre e graciosa - os jovens assimilarão a harmonia em seu próprio caráter. Dessa forma, quando se defrontarem com elementos desarmoniosos em outros ambientes ao longo da vida, não terão dificuldade em identificá-los e serão capazes de distinguir o belo do feio, assim como o bom do mau, o certo do errado. Vemos, portanto, que Platão atribui à beleza e à harmonia um papel relacionado à formação moral do ser humano.
Para o escritor Abdruschin, ao buscar embelezar e enobrecer cada ação, o ser humano vivencia um refinamento interior, espiritual. Desse modo, manifesta o valor e a gratidão que devota a cada experiência que lhe é concedida. Para o autor, esse cultivo da harmonia não se refere apenas a objetos ou obras materiais, mas à própria conduta humana. Abrange, por exemplo, a forma como nos expressamos e nos relacionamos com as pessoas. Abdruschin analisa que esse processo exige o despertar de uma sensibilidade profunda, da intuição: “Se a atuação do sentimento for dirigida pela intuição, haverá então em todos os pensamentos e atos apenas beleza, equilíbrio e enobrecimento.” Pois a intuição é a ponte que permite ao ser humano captar irradiações provenientes de planos superiores, luminosos, onde a beleza e a harmonia são plenamente evidentes. Isso porque, como Platão já intuíra, ali tudo vibra de acordo com as Supremas Leis.
Conferir beleza e harmonia às atuações cotidianas é uma maneira de valorizá-las, evitando sua banalização. O simples ato de pôr à mesa, o cuidado na disposição dos utensílios, o zelo no manuseio e apresentação dos alimentos, a atitude das pessoas naquele momento, podem transformar o corriqueiro hábito da alimentação em um ritual, que lança pontes em direção ao sagrado. É como se aquele momento, de outra forma mecânico e passageiro, fosse tornado especial, aspirando à eternidade: um momento digno de ser lembrado. Assim como ocorre na cerimônia do chá oriental, em que o simples ato de beber chá na companhia de um amigo é alvo de uma preparação repleta de significados, tornando-se um evento único e memorável.
O cultivo da beleza não exige luxo nem suntuosidade, como percebi na singela casinha repleta de plantas na varanda... Trata-se de uma atitude diante da vida, perpassada por cuidado e consideração, um olhar atento que garimpa preciosidades nos momentos mais corriqueiros, procurando valorizá-las e favorecê-las. E, interessante, a beleza que descobrimos no mundo de alguma forma passa a fazer parte de nós, como se nos emprestasse algo do seu brilho, lançando luz em nossos caminhos.




Fotos: Sibélia Zanon

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