sábado, 5 de maio de 2012

A dor de existir


Daniela Schmitz Wortmeyer


O Paraíso representa, para alguns, um estado de eterna satisfação e ausência de dificuldades de qualquer espécie. Semelhante concepção se relaciona também a um ideal de felicidade: uma existência preenchida inteiramente por prazer, conforto e realização de todos os desejos. Se fôssemos expressar graficamente, teríamos uma linha reta: nada de curvas, desvios, descidas, subidas, mudanças de direção...

A imagem da linha reta me faz lembrar um eletrocardiograma. Sabe aquele aparelho que por vezes fica ao lado de uma pessoa hospitalizada, registrando as batidas do coração? Pois é, quando vemos nele o desenho de uma linha reta, significa que... o coração parou de funcionar. Já não há mais vida naquele corpo. Se fizermos uma analogia com o ideal de felicidade descrito acima, não nos dá o que pensar?

A palavra existir origina-se do latim ex(s)istere, que é traduzido por expressões como: sair de, elevar-se de, emergir, nascer, provir de, manifestar-se, mostrar-se. É um termo formado por duas partes: ex-, que significa “à frente”, e sistere, “fazer ficar de pé”. Para mim, remete ao sentido de colocar para fora, realizar algo, fazer emergir as potencialidades do ser. Como a planta que realiza o potencial da semente ao projetar o broto para fora da terra, tornando visível a sua essência.
Se pensarmos na existência como afirmação de potencialidades, será que podemos considerá-la um processo fácil?
Uma criança normalmente nasce com potencial para andar como bípede. Tão logo seu organismo atinja maturidade para tanto, vivendo em um ambiente minimamente adequado, ela começa a se movimentar, rasteja, até adquirir o andar quadrúpede: engatinha. Todo o seu corpo se adapta ao deslocamento nessa posição, de modo que adquire proficiência em “andar de quatro”. E eis que no auge desse domínio, quando já se movimenta como um ás entre os móveis da casa, ela voluntariamente se desestabiliza e passa a ensaiar o andar de pé, modificando inteiramente sua perspectiva do mundo. A despeito de toda a insegurança que essa mudança provoca, a criança insiste em realizar seu potencial: desengonçada, caindo e levantando, ela não desiste até dominar o andar bípede. Como a semente que sabe que seu destino é ser planta e luta para realizá-lo, enfrentando todo tipo de obstáculo.
E os adultos, como costumam enfrentar suas limitações? Continuamos parecidos com as crianças, pouco ligando para ridicularizações e fracassos, em busca da afirmação plena de nosso ser? Ou será que preferimos nos acomodar ao já conquistado, evitando passar por desconfortos e situações novas e desafiadoras?
Eu particularmente já percebi que, se dependesse unicamente da minha livre deliberação, estaria em um estágio de desenvolvimento muito anterior em vários aspectos. Por diversas vezes fui colocada pela vida em situações difíceis, das quais não podia me esquivar, e tive que desenvolver dimensões atrofiadas do meu ser. De repente, tive que realizar uma palestra para um grande público, em um imenso auditório... Que desafio! O frio na barriga foi grande, mas no final descobri que eu era capaz de realizar a tarefa. E começar a praticar corrida, então... Eu que sempre era uma das últimas a ser escolhida nos times de esporte da escola, que achava que não tinha nenhum perfil de desportista, tive que desenvolver essa capacidade. E sabe que cheguei até a ganhar medalha em corrida rústica? E aqueles colegas de trabalho difíceis com que nos deparamos vez ou outra, que nos dão, esses sim, vontade de sair correndo... Depois de muito procurar alternativas para conviver com certas pessoas, acabei percebendo o quanto me modifiquei, ampliando minhas capacidades internas, e algumas histórias até terminaram em belas amizades. Lembro-me do pensamento de Gibran Khalil Gibran, filósofo e poeta libanês: “Aprendi o silêncio com os faladores, a tolerância com os intolerantes, a bondade com os maldosos; e, por estranho que pareça, sou grato a esses professores.”
Superar limites exige esforço. Exige vencer aquela vontade de ficar no patamar em que estamos, sem ter que enfrentar desconfortos, sem precisar esticar os músculos adormecidos... Sair da inércia dói. Que o digam aqueles que começaram a praticar uma atividade física, depois de tempos de vida sedentária... Mas seria realmente possível construir uma vida saudável sem sair do comodismo? Não são as conquistas que exigiram maior esforço as mais significativas, que possuem real valor em nossa existência?
Para o escritor Abdruschin: “Um braço só se pode robustecer quando se exercita continuamente. Negligenciando nisso, terá que enfraquecer. E assim também cada corpo, cada espírito! Voluntariamente, porém, pessoa alguma se deixa levar a isso. Alguma obrigação deve prevalecer!” De minha parte, penso que devo agradecer pelos desafios que a vida incessantemente me coloca, por me obrigar a romper com a acomodação. E ter coragem para lutar, enfrentar os obstáculos, expandir meus limites – apesar das dificuldades e resistências internas. Pois como já disseram tantos pensadores: a luta pela vida é a luta pela autoafirmação do ser, pela explicitação de todas as suas potencialidades. Quem vive se escondendo dos desconfortos, evitando todo tipo de situação nova e imprevisível, termina vivendo uma existência muito limitada, tornando-se um espírito encolhido e amedrontado diante dos limites que ele próprio se recusa a ampliar.
Há no mundo rios forçados pelo homem a correr em linha reta. Foram desviados de seu curso natural, cheio de curvas e “imperfeições”, para atender a determinados interesses. Após algum tempo, o que ocorre com esses rios? A vida neles vai se extinguindo, até que os rios simplesmente morrem, pois foi silenciado o “cantar das águas”. O movimento sinuoso das águas, que ultrapassam de forma sutil ou vigorosa os obstáculos do percurso, segue uma sabedoria profunda: não se destina apenas a alcançar um ponto final, mas a vivificar-se no trajeto que percorre, alimentando o fluxo vital.
Sobre o ideal de felicidade, o meu não é mais uma existência em linha reta, porque hoje sei que ela corresponde à própria morte. Quero aceitar os convites que a vida generosamente me oferece para crescer, a despeito dos tropeços, dos ensaios desengonçados, das diversas tentativas necessárias para finalmente aprender... Pois vida é movimento! Apesar da dor do esforço para expandir limites, quando experimentamos a ampliação do ser há vitalidade e alegria inigualáveis.

“Movimento é o principal mandamento para tudo o que existe nesta Criação, pois ela se originou do movimento, é mantida e renovada por ele!” 

2 comentários:

  1. Identifico-me com este post. Como a minha vida não tem muitos obstáculos, as pessoas mais próximas de mim "fazem irregularidades no rio" da minha vida.
    - Ajuda-me a fazer uns gráficos em excel mas tem de ser assim e assado e tens 4 horas para fazê-lo. (Fiz um milagre!)
    - Ajuda-me a fazer um site para vender os livros do meu curso. (Fiz outro pequeno milagre!)
    - Ajuda-me a restaurar estes posters de 2002 que mais ninguem tem, nem sequer a organização que fez o evento. (Um marco histórico na minha vida!)
    - Ajuda-me nisto, ajuda-me naquilo - e lá vou tapando buracos e fazendo de alavanca na vida dos amigos.

    Vendo bem a situação, acho que não tenho vida própria. Devo estar morto... Não há nada por mim, é sempre em função dos outros.

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  2. Ótimo texto para "vitaminar" nossos corpos físicos e espirituais a cada novo dia!

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