Daniela Schmitz Wortmeyer
Gosto de colecionar contos e histórias. Há alguns anos, encontrei um belo
conto zen-budista intitulado “Jardim Zen - A Beleza Natural”, de autor
desconhecido, que reconto a seguir com pequenas adaptações:
Um monge jovem era o responsável pelo
jardim de um famoso templo Zen. Ele tinha conseguido o trabalho porque amava
flores, arbustos e árvores. Próximo dali havia outro templo menor, onde vivia
apenas um velho mestre Zen.
Um dia, quando o velho mestre esperava
a visita de importantes convidados, o jardineiro deu uma atenção especial ao
cuidado do jardim. Tirou as ervas-daninhas, podou os arbustos, cardou o musgo,
gastou muito tempo meticulosamente passando o ancinho e cuidadosamente recolhendo
as folhas secas de outono. Enquanto ele trabalhava, o velho mestre observava
com interesse, de cima do muro que separava os templos.
Quando terminou, o monge afastou-se um
pouco para admirar seu trabalho.
"Não está lindo?", ele
perguntou, feliz, para o velho monge.
"Sim", replicou o ancião,
"mas está faltando algo crucial. Me ajude a pular este muro e eu irei
acertar as coisas para você."
Após certa hesitação, o monge levantou
o velho por sobre o muro e pousou-o suavemente ao seu lado. Vagarosamente, o
mestre caminhou para a árvore mais próxima do centro do jardim, segurou seu
tronco e o sacudiu com força. Folhas desceram suavemente à brisa e caíram por
sobre todo o jardim.
"Pronto", disse o velho
monge, "agora você pode me levar de volta".
Para mim, esse
conto guarda diversos significados.
No extremo
oposto, estão os jardins ingleses clássicos, com seu formalismo, ângulos
uniformes e plantas milimetricamente podadas – onde uma folha caída no gramado
representa uma “falha” na composição geral, que deve ser cuidadosamente
extirpada. Manter um paisagismo nesse estilo demanda uma alta dose de investimento,
por seu elevado artificialismo na condução da Natureza. Ao escrever essas
linhas, lembrei-me do inglês Francis Bacon, reconhecido por muitos como o pai
da ciência moderna, que defendia que o homem deve descobrir os segredos da
Natureza para dominá-la e colocá-la ao seu serviço (por isso o apelidaram
ironicamente de “torturador da natureza”).
O velho mestre
Zen, em contrapartida, mostrou ao jovem monge a importância da naturalidade na
composição de um jardim. Ainda que moldado por mãos humanas, o paisagismo deve
imitar as formas e movimentos da Natureza, salientando-os aos olhos do
observador. Por isso ele sacudiu a árvore, libertando suas folhas sobre o
cenário composto pelo homem... Nessa concepção, a verdadeira beleza emerge da
integração do ser humano com o ambiente natural, em uma dança harmônica ao ritmo
das leis universais. Um olhar bem diferente do adotado pela ciência ocidental
inaugurada por Bacon.
Pode-se
perceber que esse conto não trata apenas de jardins, mas de uma visão de mundo,
de uma maneira de se relacionar com a vida, que pode ser percebida em diversos
contextos.
Existem
pessoas que são como os jardins ingleses: não saem de casa sem estarem
milimetricamente “produzidas” da cabeça aos pés. Tudo é calculado, antecipado,
nada pode estar fora do lugar – ou seja, nada pode ser natural. O balançar dos
cabelos pelo vento representa uma ameaça à “perfeição” da obra, que geralmente
demandou um grande investimento de tempo e energia em sua composição. Do mesmo
modo, gestos, palavras e manifestações afetivas são ensaiados, visando
transmitir determinada imagem aos espectadores. Vive-se uma personagem, que tenta
esconder as “imperfeições” de seu intérprete seguindo um roteiro padronizado, quase
sem margem para adaptações e improvisações originais.
Mas, ufa, um
observador atento poderia questionar: o que há tanto para se esconder do mundo
externo? Por que é necessário tanto artificialismo nas relações?
Estávamos
hospedados pela primeira vez na casa de um amigo, já faz muitos anos, e locamos
um filme para assistirmos naquela noite. Ainda pouco à vontade naquele novo
ambiente, olhávamos atentamente para a tela, sem emitir comentários. Mas a
verdade é que o filme escolhido era péssimo. Qual não foi minha surpresa,
quando nosso amigo levantou-se e disse: “Bom, eu vou dormir. Vocês fiquem à
vontade”, e se retirou da sala sem qualquer constrangimento. Instantaneamente
eu respirei aliviada. A partir daí, também me senti livre para desistir do
filme, assim como para ter uma convivência mais natural naquele espaço. Percebi
que lá também não havia aquela preocupação excessiva em esconder a dinâmica
natural da casa, com seus aspectos por resolver, das “visitas”...
Cultivar a
beleza e buscar o aperfeiçoamento não precisam significar “torturar” nossa
natureza, com implacável rigidez e obstinação. É possível ter flexibilidade e
tolerância nesse processo, compreendendo que o Universo se equilibra graças ao
interjogo de polaridades opostas e complementares. Por exemplo, ordem e
desordem são momentos que se alternam quando há desenvolvimento. É necessário
desorganizar o já estabelecido para que possam surgir novas formas de
organização. A fixação exagerada em um dos extremos produz estagnação e
desarmonia, engendrando-se por vezes uma casca na qual a forma não faz jus ao
conteúdo.
O filme
fracassado, a louça suja na pia, o penteado alterado pelo vento, as folhas
espalhadas no chão, são situações que existem onde há vida. Onde existe
movimento, há tarefas inacabadas, coisas por resolver, marcas da natureza no
corpo e inquietações na alma. Por que fazer de conta que somos seres prontos e
acabados?
Penso que às
vezes não haveria real necessidade de toda essa performance, não fosse a imensa insegurança no íntimo dos atores,
um colossal medo de não corresponder a expectativas externas e sofrer
rejeições. Parece que acreditamos nas imagens ilusórias disseminadas pela
mídia, de pessoas “perfeitas” e “superpoderosas” vinte e quatro horas por dia, sem
refletir que todos os seres humanos reais possuem fragilidades e limitações.
Ao ocultarmos
nossa verdadeira natureza, mantemos relacionamentos superficiais e distantes, que
não possibilitam o autêntico encontro entre as pessoas e o compartilhar de
situações propriamente humanas. Agindo como personagens de faz-de-conta, o
máximo que conseguimos é viver uma encenação, que não consegue preencher nossas
necessidades mais profundas.
Quão diferente
é, porém, quando encontramos alguém que aprendeu a lidar com suas inseguranças
e imperfeições, expressando-se de forma natural. Uma pessoa que consegue assumir
seu inacabamento, seus erros e acertos sem medo, enquanto busca humildemente
tornar-se cada vez melhor, torna-se mais capaz de compreender as limitações
alheias. Sentimo-nos diante de alguém realmente “humano”. Segurança, verdade e
confiança abrem passagem, trazendo transparência e profundidade ao
relacionamento: passamos a também querer ser mais autênticos e humanos, apoiando-nos
no solo firme de nossa própria essência, em vez de vivermos como espectadores
passivos dentro de nós mesmos.
Fotos: Sibélia Zanon
Que lindo Daniela!!Parabéns!
ResponderExcluirAbraços Raquel