Sibélia Zanon
Quando pensamos em coisas que nos são sagradas, no
sentido de serem respeitadas, apreciadas e, portanto, cuidadas, vivenciamos uma
revalorização de conceitos.
Imaginemos a seguinte cena: durante uma viagem de
férias, uma jovem fica emocionada com a beleza da natureza, reconhecendo-a como
algo de especial valor. No decorrer dos dias seguintes, de volta à rotina, compra
um pássaro, que passa a morar numa gaiola na área de serviço de seu
apartamento. Imagina, assim, ter a natureza mais próxima de si.
Na verdade, porém, a natureza ficou mais longe, pois a
moça ignorou uma característica fundamental do pássaro: suas asas. E com isso
ela exerce um amor pela metade, um amor que privilegia a posse, sem
comprometimento com o bem-estar de quem diz amar. Seu reconhecimento do valor
da natureza está limitado pelas grades de uma gaiola. Pode-se argumentar que
um pássaro que nasceu em cativeiro não consegue sobreviver caso repentinamente
se torne livre, mas a justificativa não convence, pois assim que não houver
mais consumidores para pássaros em gaiola, eles voltarão a ganhar asas.
Partimos do pressuposto de que reconhecer
verdadeiramente o valor de algo se traduz automaticamente em respeito e no
desejo de proteger. Implica ação, que pode transformar uma veneração, por vezes
vazia, numa atitude proativa.
A capacidade de reconhecer algo sagrado ou de real
valor não está vinculada ao tempo de vida. Não está ligada à idade adulta ou infantil,
mas sim à verdadeira infantilidade, que pode se evidenciar em qualquer
época da existência.
Jesus já dizia: Tornai-vos como as crianças! Talvez
ele estivesse se referindo ao resgate de uma pureza capaz de captar as
impressões do mundo que nos cerca de forma menos racional, mais receptiva e
sensível, intuitiva.
Mas como a capacidade de reconhecer o que tem real
valor pode sair do mundo das ideias e entrar no mundo das ações? Num primeiro
momento seria interessante observar se a ação, o sentimento e a fala estão em
sintonia. Como, por exemplo, explicar para uma criança que o alimento e a água
são sagrados e precisam ser cuidados, se ela vê frequentemente ambos serem
desperdiçados dentro da própria casa?
Outro aspecto intrigante é a relação com o tempo. A
nossa constante pressa ao percorrer a vida está nos levando para onde? O
respeito, muitas vezes, exige tempo, e temos dificuldade em esperar pelo tempo
de as coisas acontecerem.
Níkos Kazantzákis, escritor, poeta e pensador grego,
mostra, com delidadeza, em Zorba, o Grego, a relação com o
tempo. Ele conta que uma borboleta demorava muito a sair de seu casulo e ele
passou a esquentá-lo com o calor de seu corpo. “Abriu-se o invólucro e a
borboleta saiu arrastando-se. Não esquecerei jamais o horror que tive então:
suas asas ainda não se haviam formado, e com todo o seu pequeno corpo trêmulo
ela se esforçava para desdobrá-las. Debruçado sobre ela, eu ajudava com meu
sopro. Em vão.” A borboleta não resistiu e o escritor conclui: “Creio que esse
pequeno cadáver é o maior peso que tenho na consciência. Pois, compreendo atualmente,
é um pecado mortal violar as leis da natureza. Não devemos nos apressar, nem
nos impacientar, mas seguir com confiança o ritmo eterno.”
A reflexão parece utópica em uma Terra superpopulosa,
com cidades intransitáveis e uma sociedade ligada ao consumo. Mas será que
falamos realmente de utopias ou de transformações que se farão necessárias?
Vive-se numa época em que o muito parece ser inimigo
do bom. Um exemplo: a combinação de muito lucro em curto espaço de tempo, muito
desperdício e muita carne sendo produzida para alimentação. A consequência é a
falta de tempo para a galinha crescer, para o gado se desenvolver e isso gera
confinamento, desmatamento, condições duvidosas na criação em larga escala. E
que “alimentação sagrada” seria essa, que é consequência de tantas
insensibilidades em relação à vida?
Reconhecer algo sagrado compromete à ação, o que
parece muitas vezes difícil porque queremos, acima de tudo, distração. Acontece
que a felicidade tão almejada vem da ação. Pelo menos é o que diz o escritor
australiano Paul Gilding, em entrevista à Globo News: “O que nós temos de
perceber é que a qualidade de vida não vem das distrações, e sim de fazer
coisas. Não se trata de se distrair na vida, e sim de vivê-la. Isso pode vir de
uma comunidade mais forte, de aprender coisas novas...”. O escritor diz que
grande parte dessas coisas não custa dinheiro, mas leva tempo. E vale a pena
resguardar esse tempo, porque usá-lo exclusivamente para ganhar dinheiro não
traz satisfação. “Nós temos de consertar o mundo, mas olhando para dentro e
consertando nós mesmos. É por isso que toda essa ideia tem a ver com uma evolução
consciente da humanidade e de nós mesmos. Reconhecer que isso tem a ver com
qualidade de vida e que a vida assim será melhor é um ótimo começo”, conclui
Gilding.
Reconhecer valores e protegê-los faz parte de uma evolução consciente que pode gerar um recomeço mais humano e coerente, recomeço dotado de asas que voam mais longe, leve e alto.
Reconhecer valores e protegê-los faz parte de uma evolução consciente que pode gerar um recomeço mais humano e coerente, recomeço dotado de asas que voam mais longe, leve e alto.
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