Sibélia Zanon
Todas as vezes em que vou a um mercado de
frutas e verduras fico feliz. Algumas vezes a sacola acaba pesando mais do que
deveria porque os olhos ficam gulosos de formatos e cores e a boca pressente os
aromas das mais espetaculares receitas, esquecendo-se de que não poderei
cozinhar por dias inteiros.
Há uns bons anos, ao visitar um mercadão em
uma viagem ao Nordeste com a minha irmã, ficamos perplexas com o tamanho do
inhame que eles exibiam por lá. Eles não se pareciam em nada com os inhames de
silhueta econômica que encontrávamos por aqui. Eram pilhas com os enormes
frutos partidos ao meio: brancos, imaculados, generosos em nutrientes.
Perguntamos para a moça da barraca o que era
aquilo e como costumavam comê-lo. A receita do ensopado não ficou bem guardada
na memória, mas ficou marcada a expressão marota dela que, junto com os que
estavam em volta, riram da nossa pergunta tola.
Fato é que essa abundância que nos cerca não
é óbvia como distraidamente podemos imaginar. Ela é um espanto. E o espanto me
faz pensar: até quando?
O desperdício ronda nosso cotidiano como um
fantasma, ora mais assustador, ora corriqueiro.
No couvert de um restaurante eram servidas
fatias de pão saídas do forno, regadas de azeite e salpicadas de orégano. Mal
acabávamos de comer a porção e já ganhávamos uma reposição até o momento em que
sobraram fatias na cestinha.
Ainda que a cultura do “levar para casa”
tenha progredido, em certos restaurantes ainda achamos que “não fica bem” pedir
para levar o que sobrou. E se pensarmos sobre o que acontece com o que fica, com
o pão quente intocado?
Uma vez, uma família de alemães me explicou
que a guerra havia deixado marcas.
- Ela não gosta até hoje que alguém pegue
algo do seu prato. – comentavam,
referindo-se à senhora mais velha da mesa.
Há países em que a cultura do cuidado é
maior, mas por aqui, ainda que a fome grite em algumas regiões, somos
majoritariamente “românticos” e acreditamos no “felizes para sempre”. Talvez por
não termos sofrido nenhuma guerra e por termos um clima que favorece a
diversidade e a colheita, acreditamos na abundância eterna.
Num tempo em que homem e natureza eram mais
próximos, festejava-se Gaia, a protetora e soberana, que abençoava a Terra com
sua grande comitiva. Frutos e espigas do campo estavam sob a proteção de
Deméter. “Subordinados a ela (Deméter), acham-se os povos dos ‘pequenos vanens’, cuidando de todos os grãos da Terra, para que eles não se percam, mas sim continuem sempre de novo a germinar e a produzir flores e frutos”, narra Roselis von Sass, em O Livro do Juízo Final.
Uma rede de sabedorias era tecida por meio da
conexão entre ser humano e natureza e a relação que se tinha com o alimento era
outra. Ainda hoje, em alguns países, comemora-se a festa
da colheita, mas isso ocorre cada vez mais raramente.
Além do desperdício corriqueiro que começa na
produção de alimentos e acaba na geladeira de cada casa, cenas brutais sobre a
produção em massa permeiam os noticiários como pintinhos sendo jogados vivos no
lixo ou suco de laranja fresco escoando pelo chão.
São desperdiçados todo ano no Brasil 26,3
milhões de toneladas de alimentos, enquanto discutem-se soluções para a fome. Complicada
a equação da fartura e do desperdício. Complicada também a soberania que
fatores econômicos têm em qualquer atividade, muitas vezes, sufocando o bom
senso.
Em um universo que funciona focado no lucro, uma
reflexão sobre economia e bom senso pode ser ingênua, mas o que fazer se algumas
lições que aprendemos quando pequenos não nos abandonam?
Desde a educação infantil, quando plantávamos
feijão no algodão, nascia feijão. Qual será a colheita do plantio do
desperdício? Volto ao mercadão. Toda vez parece um espanto! Até quando a abundância
vai nos proteger de nós mesmos?
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