Sibélia Zanon
“...a imensa delicadeza de minha avó a levava a
interromper suas lembranças quando elas se tornavam muito penosas. Subitamente
me perguntava: ‘E você, então? Conte-me de seu hotel.’ Não havia grande coisa
para contar, mas sua maneira de fazer-me a pergunta me levava a inventar. Foi
talvez assim que nasceu meu gosto pela ficção. Contamos histórias às crianças;
as histórias, eu as contava à minha avó. Inventava peripécias em meu hotel,
clientes excêntricos, dois romenos com três malas, e começava a crer nisso eu
também, nessa vida palpitante que não era a minha. Eu a deixava e reencontrava
meu hotel para enfrentar a calma da verdade.”
As
lembranças, David Foenkinos
No trecho do livro As lembranças, do escritor francês David
Foenkinos, o personagem, recepcionista de um hotel e aspirante a escritor, aumenta pontos ao contar para a avó as
histórias de sua vida cotidiana, que, na sua concepção, não apresentava nada de
extraordinário.
Muitas vezes os sonhos
e aspirações que construímos sobre nossas vidas e trabalho ficam distantes da
realidade.
O que faz a diferença,
capaz de gerar satisfação na vida profissional? Ganhar mais ou menos dinheiro?
Trabalhar naquilo que se gosta? Ter um bom relacionamento com os colegas de
trabalho? Trabalhar com mais ou menos pressão? Num ambiente mais ou menos
acolhedor? Mais perto ou mais longe de casa? Sentir que melhora o mundo com o
seu trabalho? Receber na portaria do hotel romenos excêntricos em vez de
sujeitos comuns? O que será que será?
Às vezes, uma pessoa
chama a atenção por fazer bem o seu trabalho ou por irradiar algo diferente. Certa
vez, um lixeiro chamou a atenção de um menino. Todas as vezes que o lixeiro
passava, recolhendo o lixo na rua, ele acenava feliz para o garoto, que
brincava no quintal. No começo, o garoto, entre tímido e maroto, tentava se
esconder atrás de um arbusto pequeno, que não servia de esconderijo para
ninguém. Depois de umas tantas vezes, o menino começou a sorrir e logo mais ele
já esperava o lixeiro aparecer para poder acenar também. Um dia, o pai
perguntou o que o menino queria ser quando crescer. Ele respondeu, animado:
- Lixeiro!
Uma amiga me contou
que, na última vez em que esteve doente e precisou ficar alguns dias hospitalizada,
um enfermeiro se destacou e ficou marcado na sua memória. Tudo o que ele tinha
de forte e grande, tinha também de cuidadoso. Quando entrava à noite no quarto
para fazer qualquer coisa, ele falava baixinho para não acordar o paciente de
forma brusca. A delicadeza com que tratava os pacientes permitia que eles
continuassem se sentindo pessoas, mais do que doentes. Um dia ele contou para a
minha amiga que havia sofrido um acidente muito grave e por isso tinha ficado
seis meses hospitalizado. Nasceu, dessa experiência, sua vontade de ser
enfermeiro.
Tem gente que exerce
uma função com tanta propriedade que parece crescer. É como se o seu corpo
ocupasse com altivez aquele espaço de atuação. Como se sua postura fosse ainda mais
ereta – não por orgulho ou vaidade, mas por irradiar alguma
beleza desconhecida. É como se o espaço ocupado por aquela pessoa, naquele
momento, fosse um espaço de satisfação.
E isso, que poderia ser algo corriqueiro, impressiona. A satisfação
impressiona. É cativante, contamina o ar. “Cada pessoa pode e
deve aspirar por ideais, seja qual for a atividade que desenvolve aqui na Terra. Pode com isso enobrecer
qualquer espécie de trabalho, dando-lhe finalidades amplas”,
escreve Abdruschin em Na Luz da Verdade.
Talvez
fazer um bom trabalho não seja necessariamente fazer o trabalho dos sonhos.
Talvez fazer um bom trabalho não seja viver aventuras. Talvez fazer um bom
trabalho não seja mudar o mundo, da forma como nosso imaginário adolescente
idealizava. Talvez fazer um bom
trabalho não precise ser algo de dimensões visivelmente revolucionárias. Talvez
esteja num gesto pequeno. Um gesto do nosso tamanho real. Gestos pequenos que
desabrocham grandes.
Isso porque mesmo no ordinário, que não tem nada de
extra, podemos ser eficientes, dadivosos, transformadores. Temos sempre a
chance de estar presentes e alertas, doando o melhor que temos a oferecer, mesmo que seja na recepção de um hotel, onde
nada de extraordinário parece acontecer.