quinta-feira, 31 de janeiro de 2019
quarta-feira, 9 de janeiro de 2019
A arte de se reinventar
Sibélia Zanon
No meio do exercício, a professora pediu que todos parassem. Ela notou que muitos executavam movimentos contidos, visando a apenas não deixar a bolinha cair. Com isso, não usavam o espaço, não ousavam novas manobras, não se desafiavam. Mas, precisaria haver tanto medo de deixar a bolinha cair? Não. O interessante seria aceitar que as quedas fazem parte da vida e que é sempre possível reinventar-se diante delas. A professora pegou a bolinha e fez ela mesma o exercício. Deixou a bolinha cair no meio da manobra e não se intimidou. Usou o momento da queda a seu favor, integrando-o ao movimento, e fez arte com o inusitado.
Quem nunca deixou uma bolinha cair, que atire a primeira. Nem sempre é possível contornar a queda, fazendo dela arte. Mas, definitivamente, uma queda não precisa ser um fim. “Nenhuma criança aprende a andar sem levar muitos tombos, mas quase sempre sorrindo se levanta novamente, até adquirir firmeza nos passos. Assimtem de ser o ser humano no caminho através do mundo. De forma alguma desanimar ou queixar-se de modo lastimoso, se cair uma vez. Levantar-se corajosamente e experimentar de novo! Apropriar-se ao mesmo tempo dos ensinamentos da queda, porém na intuição, e não com o raciocínio observador”, escreve Abdruschin, autor de Na Luz da Verdade.
Não deixar que o medo de um fracasso futuro ou a sombra de um antigo apaguem a valentia; o arrojo ou a ousadia é uma arte. Lenine canta: “Tenho medo de gente e de solidão / Tenho medo da vida e medo de morrer / Tenho medo de ficar, medo de escapulir / Medo, que dá medo do medo que dá ”. E conclui: “O medo é a medida da indecisão”.
O receio paralisa, tolhe, oprime, amarra e, quando alimentado, recebe reforços de toda parte. Cresce desmedido. Muitas vezes, o medo é mais potente na antecipação de uma tragédia do que ao vivenciar a própria. Pode-se sofrer muito mais por conjeturas formuladas do que pela realidade.
Isso porque, quando o desafio efetivamente bate à porta, diversos fatores podem colaborar para a sua resolução. Assim como um corponão esmorece na hora do perigoao ser estimulado pela adrenalina, também o interior de uma pessoa pode ampliar-se em busca de uma solução e conectar-se com a ajuda, ao ser impactado por uma grande aflição. Já pensou que os desafios que a vida propõe para cada um, como resultado de sua própria semeadura,têm tamanho compatível com a sua capacidade de superação?
Se o medo tende a paralisar, a coragem faz o contrário. Ela impele ao movimento: enxergar fatos, buscar alternativas, experimentar manobras… A valentia é o lastro que permite ousar movimentar-se dentro de uma realidade limitada ou imperfeita. Permite trazer à superfície o que vive reprimido no interior; permite criar, reinventar-se e sair do torpor. “Cada vez que fazemos o esperado, reforçamos um padrão humano automático de torpor. Existe em nós uma tendência de querer agradar a nós, aos outros e à moral de nossa cultura. Com isso vamos gradativamente nos perdendo de nós mesmos”, escreve o rabino Nilton Bonder.
Se cada um ousar lançar a bolinha a seu modo, aprender com as quedas sem se intimidar, e não tiver como primeira necessidade ser popular perante si mesmo ou perante os outros, talvez a vida fique mais instigante, mais autêntica, menos burocrática, mais artística e verdadeira.
Valentia
Depois de cair, a única solução é levantar-se. Se uma criança nunca tiver a permissão de subir numa árvore porque pode cair, como irá lidar com as quedas na idade adulta? O cuidado, a vigilância e a preservação são características importantes na vida. No entanto, essas qualidades são diferentes do medo, do constrangimento, da covardia e do desânimo. Como nós, adultos, estamos lidando com as nossas quedas?
“Não importa quão estreita a passagem,
Quantas punições ainda sofrerei,
Sou o senhor do meu destino,
Sou o capitão da minha alma.”
William Ernest Henley
segunda-feira, 17 de dezembro de 2018
A essência do presentear
Sibélia Zanon
Outro dia escutei no rádio comentários a respeito de uma pesquisa sobre
o ato de presentear. A pesquisa constatava que dar presentes gera alegria mais
duradoura do que comprar coisas para si próprio. Achei interessante. Presentear
abrange certos rituais: pensar sobre o outro, sobre suas características e seus
gostos, e mapear as coisas que podem lhe ser úteis e trazer alegria.
As festas de final de ano parecem vir carregadas de uma certa pressão,
tirando por vezes o valor dos rituais ligados ao presentear. No entanto, a
vontade de dar algo, alegrando os outros justamente nesta época do ano parece
ter uma raiz significativa. Segundo a escritora Roselis von Sass, já antes do
nascimento de Jesus, diversos povos como sumerianos, incas e romanos realizavam
suas festividades.
A alegria por poder conviver com as pessoas que se ama, a gratidão pelo fechamento
de mais um ciclo e por outro que se abre ou mesmo as fitas que descem do céu unindo a todos refletem a riqueza
inspiradora que o mês de dezembro traz consigo.
Na esfera do presentear, o que cada um tem para dar? Além dos mais
diversos bens materiais concretos, há os bens mais abstratos, como perdão,
compreensão, respeito, bondade, generosidade, amor, harmonia... Há quem diga
que o mais importante na esfera do dar não está nos bens materiais, até porque
não seria justo que uma pessoa de poucas posses não pudesse ofertar algo de si.
“A mais
importante esfera do dar, no entanto, não é a das coisas materiais, ela está no
domínio especificamente humano. O que uma pessoa dá a outra? Dá de si mesma, o
bem mais precioso que tem, dá sua vida. Isso não significa necessariamente que
sacrifique sua vida pelo outro, mas que lhe dá aquilo que está vivo nele; dá
sua alegria, seu interesse, sua compreensão, seu conhecimento, seu humor, sua
tristeza – todas as expressões e manifestações do que é vivo nele. Nessa dação
da sua vida, enriquece o outro elevando seu próprio sentimento de vitalidade.
Não dá para receber: a dação é, em si, uma suprema alegria.”
Erich Fromm
A arte de amar
A possibilidade cotidiana de dar carrega consigo a ideia de presença e
prontidão: como ser bom para a vida e para o outro no momento presente? Como desafiar-se
a presentear com a própria maneira de ser, ou ainda, transformar-se no presente
para o outro? Talvez essa seja uma forma profunda de presentear e, por vezes
difícil, porque implica em deixar o egoísmo de lado, em autodomínio para não
machucar o outro, em lapidação e polimento constantes da própria personalidade.
Implica ainda reconhecer-se de alguma forma preenchido ou abastecido do
que possa ser essencial: valores, cultivo de bons pensamentos, boa
administração de expectativas e insatisfações... Afinal,
uma pessoa insatisfeita pode não ter muito a dar.
Assim, o presentear passa a ser também um reflexo do sentir-se grato,
sentir-se rico pela vida. Quem se sente enriquecido consegue doar
desinteressadamente porque a sua riqueza transborda. E torna-se possível também
aliviar a pressão das coisas que não importam, como a pseudonecessidade de dar presentes
caros ou de atentar para datas que eventualmente foram eleitas pelo comércio e
nem tanto pelo coração.
"Agradecer
é compartilhar ou expressar alegria pelo bem já recebido. É doar sem o mínimo
desejo de receber em troca.”
Joel S. Goldsmith
Praticando a Presença
Praticando a Presença
“Com vossa maneira de ser, deveis dar ao
vosso próximo! Não, por acaso, com dinheiro ou bens. Pois assim os pobres
ficariam privados da possibilidade de dar. E nesse modo de ser, nesse “dar-se”
no convívio com o próximo, na consideração, no respeito que vós lhe ofereceis
espontaneamente, está o “amar” de que nos fala Jesus, está também o auxílio que
prestais ao vosso próximo, porque nisso ele se torna capaz de modificar-se por
si mesmo ou prosseguir em direção ao alto, porque nisso ele pode fortalecer-se.”
quarta-feira, 28 de novembro de 2018
Olho vivo
Sibélia Zanon
Uma
vez passei uns dias numa região muito bonita, dormindo numa pousada bastante
simples. O quarto tinha uma cama, algumas prateleiras e um teto branco
salpicado com manchas de mofo. O banheiro era pequeno o suficiente para ficar
inteirinho molhado depois do banho.
Cada um constrói uma visão específica sobre o
que gera ou não conforto, e essa visão permeia a maneira como olhamos nossas
casas, nossas férias, nosso ambiente de trabalho, a arquitetura da vida. Ao
voltar para casa, depois daquele final de semana, tive um olhar novo sobre a
minha casa e sobre as minhas crenças a respeito do conforto.
Algumas vezes, focamos
tanto nas demandas que nos aguardam, no que precisa ser consertado e arrumado
que não sobra espaço para acolher e usufruir o que está bonito e funciona bem.
Esse princípio se repete em outros setores:
olhamos no espelho com reprovação uma imperfeição em vez de notar as partes
íntegras do corpo. Prestamos nossas homenagens, supervalorizando derrotas que
tivemos, em vez de usufruir as vitórias.
Sair e experimentar
outras faces do mundo e da arquitetura é bom. Voltar apropriando-se melhor da
respectiva realidade, com seus potenciais e falhas, é ainda melhor. Abrir-se
para outros parâmetros pode ser refrescante, pode acordar o olhar viciado sobre
a própria realidade e gerar uma consciência diferente a respeito dela. As
imperfeições não devem brilhar tanto, a ponto de ofuscar o que é perfeito.
“Certo dia estavam todos caminhando
sob um céu claro, numa estrada margeada por campos verdejantes e floridos.
Embora houvesse poeira na estrada, o panorama era belo ao redor deles. Os
discípulos, no entanto, mais se preocupavam com o pó que os molestava do que
com a beleza à sua volta.
Jesus ia no meio do grupo, como de
hábito. Percorria o olhar pela redondeza e regozijava-se ante o esplendor do
colorido. Em dado momento, porém, notou o desinteresse dos que seguiam à sua
frente por aquilo que tanto o encantava. Iam cabisbaixos e taciturnos. Observou
os outros à sua volta e viu que tinham a mesma atitude.
— Observai as flores dos campos!
disse-lhes, então, Jesus.
— Senhor, isso é erva daninha, que
para nada serve. Só prejudica os cereais! disse Judas, admirando-se de que
Jesus ignorasse isso.
Ao que replicou Jesus:
— Chamas toda essa beleza, criada
por meu Pai, de erva daninha, Judas? Observa as flores. Cada qual é perfeita de
acordo com a sua espécie. Que mãos humanas seriam hábeis o bastante para fazer
coisa igual?”
quinta-feira, 4 de outubro de 2018
Perfume de Brasil
Daniela Schmitz Wortmeyer
Caminhava em um domingo ensolarado e quente, a atmosfera abafadiça tornava custoso prosseguir. Um vizinho sorridente me abordou, mas logo a conversa tocou a situação política do país e numerosas inquietações sobre o futuro turvaram ainda mais o ambiente. Despedi-me e prossegui, forçando-me a concluir a caminhada em consideração aos direitos dos caninos que me acompanhavam. O calor, a mente atordoada, o corpo indisposto, eu só pensava em terminar logo o passeio.
Ao atravessar uma área arborizada ladeando um prédio, chamou-me a atenção uma grande árvore repleta de flores amarelas. De repente, a constatação: “um pau-brasil!” Enchi-me de entusiasmo e me aproximei. Logo percebi o aroma intenso, um perfume inebriante que se espalhava com auxílio de uma brisa suave, tornando as pequenas flores amarelas, com um detalhe carmim ao centro, especialmente atraentes. Abelhas se fartavam naquele verdadeiro banquete aos sentidos, emoldurado por folhas verde-escuras reluzentes.
Sentei-me sob a árvore e deixei-me enlevar por aquela dádiva inesperada. O cansaço de outrora desapareceu e foi como se meus sentidos, meu espírito despertasse para a maravilhosa paisagem ao redor. Vi ao longe um jacarandá com suas flores azul-arroxeadas, flamboyants em tons vermelhos e alaranjados, jasmins-manga com imaculadas flores brancas. Foi como se todas as preocupações terrenas desaparecessem e eu fosse transportada para uma outra dimensão, de pura paz e harmonia.
Fiquei pensando no simbolismo daquela cena, sob a árvore que leva o nome do meu país. Chamada pelos indígenas de ibirapitanga, “pau vermelho”, por conta da tintura extraída de sua madeira cor-de-fogo. “Brasil”, um nome difundido pela boca de mercadores portugueses e posteriormente associado à árvore, era repetido em rituais de saudação a um gênio da floresta, em que se utilizava o extrato da planta. Como relata Roselis von Sass no livro Revelações Inéditas da História do Brasil, a pequena tribo dos tapicaris acreditava que o sangue do gênio “Mbrasil” corria pelas ibirapitangas. Mais além, a escritora esclarece que o nome Brasil significa, em um sentido mais profundo, “terra virgem, país indevassado”.
Porém, há longos tempos esquecemos desse significado. Ao olhar as expressivas cores da bandeira nacional, muitos experimentam indiferença ou certo tom de ironia. Parece que os valores mais caros e profundos, as esperanças mais puras ligadas à terra-pátria, os vínculos de pertencimento e amor ao País, foram descartados com as desilusões pelos tantos equívocos humanos que se passaram sobre este solo. Esquecemos da beleza e do perfume do Brasil, que o sol incandescente não apenas castiga, mas alimenta novas brotações e formas de vida.
Ao me levantar e caminhar lentamente de volta para casa, ainda enlevada pela experiência sob o pau-brasil, fiquei pensando se ainda é possível se encantar pelo Brasil, esta terra tão ricamente abençoada por uma vida pujante que insiste em florescer.
Fotos: Charles Wortmeyer
terça-feira, 2 de outubro de 2018
Estrada afora
“Alexander von Humboldt, que chegou a conhecer a estrada real dos incas, denominou-a, na sua descrição de viagem, ‘a mais útil e a mais admirável de todas as obras dos seres humanos’…”
O povo inca, evoluído espiritual e materialmente, desperta interesse ainda hoje. A grande extensão de estradas é um dos testemunhos da sua competência técnica nas construções.
Considerando a pouca estrutura que se tinha na época, pode-se imaginar o empenho dispendido para conectar povoados distantes, hoje cidades e países. O esforço e a simplicidade são inspiradores: quanto se pode fazer com pouca estrutura, gerando um grande feito?
O percurso denominado Qhapac Ñan, patrimônio cultural da humanidade pela Unesco, é notável pela altitude e pelo terreno adverso, ziguezagueando por milhares de quilômetros os picos nevados dos Andes, passando por florestas, vales e desertos.
Segundo a escritora, “essa extraordinária estrada, cujo percurso hoje é em parte conhecido, conduzia em linha ininterrupta através dos países hoje denominados Argentina, Chile, Bolívia, Peru, Equador e finalmente, atravessando a linha do equador, até a Colômbia”.
Roselis von Sass narra ainda que “mais de cem pontes foram edificadas pelos incas e membros de outros povos. Pontes de pedra e madeira, ou então as famosas pontes pênseis ou de cordas. As pontes de cordas, feitas de fibras de agave, foram certamente únicas em sua espécie na Terra”.
A vitalidade, a liderança e o poder do povo inca tinham como alicerce o saber interior, que se manifestava por meio de valores como confiança, pureza e alegria em trabalhar.
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