terça-feira, 6 de novembro de 2012

Em se plantando, tudo dá


Sibélia Zanon



Todas as vezes em que vou a um mercado de frutas e verduras fico feliz. Algumas vezes a sacola acaba pesando mais do que deveria porque os olhos ficam gulosos de formatos e cores e a boca pressente os aromas das mais espetaculares receitas, esquecendo-se de que não poderei cozinhar por dias inteiros.
Há uns bons anos, ao visitar um mercadão em uma viagem ao Nordeste com a minha irmã, ficamos perplexas com o tamanho do inhame que eles exibiam por lá. Eles não se pareciam em nada com os inhames de silhueta econômica que encontrávamos por aqui. Eram pilhas com os enormes frutos partidos ao meio: brancos, imaculados, generosos em nutrientes.
Perguntamos para a moça da barraca o que era aquilo e como costumavam comê-lo. A receita do ensopado não ficou bem guardada na memória, mas ficou marcada a expressão marota dela que, junto com os que estavam em volta, riram da nossa pergunta tola.
Fato é que essa abundância que nos cerca não é óbvia como distraidamente podemos imaginar. Ela é um espanto. E o espanto me faz pensar: até quando?
O desperdício ronda nosso cotidiano como um fantasma, ora mais assustador, ora corriqueiro.


No couvert de um restaurante eram servidas fatias de pão saídas do forno, regadas de azeite e salpicadas de orégano. Mal acabávamos de comer a porção e já ganhávamos uma reposição até o momento em que sobraram fatias na cestinha.
Ainda que a cultura do “levar para casa” tenha progredido, em certos restaurantes ainda achamos que “não fica bem” pedir para levar o que sobrou. E se pensarmos sobre o que acontece com o que fica, com o pão quente intocado?
Uma vez, uma família de alemães me explicou que a guerra havia deixado marcas.
- Ela não gosta até hoje que alguém pegue algo do seu prato. – comentavam, referindo-se à senhora mais velha da mesa.
Há países em que a cultura do cuidado é maior, mas por aqui, ainda que a fome grite em algumas regiões, somos majoritariamente “românticos” e acreditamos no “felizes para sempre”. Talvez por não termos sofrido nenhuma guerra e por termos um clima que favorece a diversidade e a colheita, acreditamos na abundância eterna.
Num tempo em que homem e natureza eram mais próximos, festejava-se Gaia, a protetora e soberana, que abençoava a Terra com sua grande comitiva. Frutos e espigas do campo estavam sob a proteção de Deméter. “Subordinados a ela (Deméter), acham-se os povos dos ‘pequenos vanens’, cuidando de todos os grãos da Terra, para que eles não se percam, mas sim continuem sempre de novo a germinar e a produzir flores e frutos”, narra Roselis von Sass, em O Livro do Juízo Final. 
Uma rede de sabedorias era tecida por meio da conexão entre ser humano e natureza e a relação que se tinha com o alimento era outra. Ainda hoje, em alguns países, comemora-se a festa da colheita, mas isso ocorre cada vez mais raramente.
Além do desperdício corriqueiro que começa na produção de alimentos e acaba na geladeira de cada casa, cenas brutais sobre a produção em massa permeiam os noticiários como pintinhos sendo jogados vivos no lixo ou suco de laranja fresco escoando pelo chão.
São desperdiçados todo ano no Brasil 26,3 milhões de toneladas de alimentos, enquanto discutem-se soluções para a fome. Complicada a equação da fartura e do desperdício. Complicada também a soberania que fatores econômicos têm em qualquer atividade, muitas vezes, sufocando o bom senso.
Em um universo que funciona focado no lucro, uma reflexão sobre economia e bom senso pode ser ingênua, mas o que fazer se algumas lições que aprendemos quando pequenos não nos abandonam?
Desde a educação infantil, quando plantávamos feijão no algodão, nascia feijão. Qual será a colheita do plantio do desperdício? Volto ao mercadão. Toda vez parece um espanto! Até quando a abundância vai nos proteger de nós mesmos?